Numa entrevista concedida no âmbito da 10.ª Convenção Europeia do Têxtil e Vestuário, a que assistiu, Paulo Melo revela que o Grupo Somelos tem encetado iniciativas no sentido da sustentabilidade, desde a instalação de painéis fotovoltaicos, um investimento que deverá ser alargado, passando pela reciclagem de desperdícios, que sempre fez na sua história de 64 anos, agora numa forma mais ajustada a esta realidade, até à incorporação de matérias-primas mais ecológicas, algumas das quais inovadoras e diferenciadas. Ao mesmo tempo, tem apostado na digitalização das coleções e dos processos e na rastreabilidade dos produtos, estando em sintonia com o conceito de passaporte digital e com a legislação da UE para a sustentabilidade dos têxteis que, acredita o presidente do Grupo Somelos, poderá ajudar a nivelar a entrada de produtos no mercado europeu.
O que reteve desta convenção?
Primeiro, e que é sempre positivo, o facto de ter sido cá realizada. Acho que este é o ponto fundamental e marca a importância do sector têxtil nacional a nível europeu. O segundo ponto que me marcou é o tema da sustentabilidade e competitividade. Temos de ser sustentáveis e competitivos. Não podemos ser uma coisa sem a outra e esse é um desafio muito grande para as empresas. Um terceiro ponto que me marcou foram umas palavras proferidas pelo presidente da ATP, reforçadas pelo presidente da Euratex, que disse algo que já ando há muito tempo a dizer: tudo o que se faz na Europa demora uma eternidade, há excesso de burocracia, morosidade dos processos. Nunca saímos disto e esse mundo não se compadece com o mundo industrial em que vivemos. Os vários governos e a Comunidade Europeia são cada vez mais lentos, mais burocráticos e, por isso, acho que perdemos todos. Pela primeira vez, o sector têxtil foi considerado estratégico pela Comunidade Europeia e, sendo assim, acho que os diversos organismos que tutelam deviam ouvir mais e agir com mais rapidez. Pegando no modelo americano, eles são muito mais rápidos, muito mais eficazes. São concretos, menos estudos e mais ação. Na Europa, já temos diagnósticos para tudo, falta-nos a ação e a velocidade na ação.
Outro dos pontos muito focados foi a questão energética. Sente algum resultado prático?
Muito pouco ou nada. O Grupo Somelos costumava ter uma fatura energética, a preços até abril de 2021, na ordem dos três milhões de euros: dois milhões de eletricidade e um milhão de gás. Neste momento, vamos fechar 2022 com uma fatura energética à volta dos oito milhões de euros. Até outubro, já tínhamos pago a mais 4,6 milhões de euros com o mesmo consumo em MWh. A única empresa que está a ser apoiada diretamente é a Somelos Acabamentos, porque tem o benefício que pode ir, hoje em dia, até aos 500 mil euros e vai esgotar, com o terceiro aviso que devia ter saído no final do terceiro trimestre e chegou somente há duas ou três semanas, e ainda nada está concretizado. São medidas importantes, ajudam a minimizar este brutal impacto dos preços, mas o timing de efetivação tem que ser imediato, senão não tem o efeito que se pretende. Estes apoios estão completamente desfasados da realidade industrial. Tudo demora demasiado tempo. O grande desafio de 2022 não foi tanto comercial, tem sido muito mais operacional e ultrapassar este grande obstáculo que se chama energia, principalmente em empresas que são grandes consumidoras. Falam também num apoio adicional, que pode chegar aos dois milhões de euros, mas a questão é quando irá chegar. A medida certa, no momento certo, isso é que seria eficaz.
Que iniciativas tem a Somelos procurado empreender para minorar esses efeitos?
Acho que há aqui dois momentos muito importantes. A pandemia acelerou a digitalização nas empresas, principalmente ao nível comercial – foi a única forma de se manter um nível de vendas aceitável – e o dramático aumento da energia está a fazer com que as empresas encontrem rapidamente soluções nesta área. As empresas não podem deixar esta variável sem controlo. No Grupo Somelos, ao abrigo desta necessidade, porque não podemos impactar cinco milhões de euros de energia no nosso orçamento de um ano para o outro, nem sabemos onde é que isto irá parar, começámos, há dois anos, com um projeto de investimento em painéis fotovoltaicos de 3,3 MW e iremos, com certeza, até pela nossa estratégia de sustentabilidade, aumentar no curto prazo esse investimento. Vamos chegar, entre 2023 e 2024, com 65% a 70% da energia elétrica e térmica produzida internamente. Vamos ter mais de 3,4 MW instalados até finais de 2024, na qual teremos no final cerca de 6,7 MWh, e contratualizámos um investimento em biomassa, que será instalado no primeiro semestre de 2023, e fará com que consigamos produzir 60% da energia térmica que precisamos. Claro que nunca seremos autossuficientes, estaremos sempre no mercado a comprar entre 30% e 35% das nossas necessidades.
Que consequências estão a ter a pandemia e a guerra na Ucrânia na atividade do grupo?
São situações diferentes. Durante a pandemia, com os mercados a fecharem e as pessoas a ficarem em casa, para quem vende moda não foi nada fácil de ultrapassar. Conseguimos ultrapassar esta situação continuando a vender moda em menor quantidade, nunca fechamos a empresa, nunca deixamos de contactar os clientes nem de apresentar a coleção, nem mudamos o nosso core para produtos sanitários. Seguimos a nossa estratégia e, por incrível que pareça, continuámos a vender moda, através de uma app que desenvolvemos em tempo recorde, a Somelos Digi, onde introduzimos todas as coleções desenvolvidas. Foi um sucesso e a primeira a estar no mercado neste formato.
Com a reabertura dos diversos mercados onde operamos, fomos premiados pelos nossos clientes, na medida em que, conforme foram reabrindo, foram colocando as suas encomendas em maior quantidade e assim fechámos 2021 com mais vendas.
Com as cadeias de fornecimento totalmente alteradas e com aumento da procura, os preços, a partir de abril de 2021, começaram a aumentar substancialmente – matérias-primas, transportes, químicos… Depois, a partir de setembro de 2021, começou a própria energia elétrica a aumentar de preço. E, a partir de fevereiro de 2022, com a guerra na Ucrânia, começou uma escalada sem precedentes e com contornos que ninguém poderia imaginar. A nossa opinião era que a energia elétrica iria, ao longo dos próximos anos, ter aumentos progressivos ao nível de preço, por isso já tínhamos começado a investir em painéis fotovoltaicos, só que se agudizou com a guerra para níveis nunca vistos e com um impacto brutal nos custos operacionais das empresas. O Grupo Somelos teve de ir aumentando e ajustando os preços dos seus produtos, mitigando esse impacto e tentando manter as margens. A nossa estratégia sempre foi de operar em nichos de mercado, em pequena e média escala, com produtos diferenciados, de elevado valor acrescentado, de altíssima qualidade, com uma carteira de clientes muito diversificada, com vendas muito pulverizadas e em muitos países, e isso faz com que seja possível ir ajustando as variáveis necessárias.
Em termos de mercados, como estão distribuídas as vendas entre a Europa, a América e a Ásia?
Este triângulo Europa, EUA e Ásia é o ideal. Estou convencido, tal como já estava no passado, que a Ásia e os EUA vão continuar a crescer. A Europa vai crescer menos, mas é na Europa que são geradas as principais tendências do que se vai usar nas próximas estações e onde estão a criatividade e as principais marcas internacionais. Para a Somelos, o melhor mercado europeu continua a ser Itália, aliás, tem sido nos últimos 30 anos, mas também os mercados nórdicos. França, Reino Unido, Alemanha e Espanha são mercados muito importantes. Em termos globais, o primeiro mercado é o americano. Atualmente, as nossas vendas estão repartidas 17% para os EUA, 10% para a Ásia e o resto é na Europa. No futuro, acho que os EUA podem posicionar-se entre os 20% e 25% das vendas. Como trabalhamos com muitos clientes, mais de 2.000 em todas as unidades do grupo, o maior cliente representa 2,7% das vendas.
Além da competitividade, outra temática em foco na convenção da Euratex foi a sustentabilidade. Como encara as medidas anunciadas pela União Europeia nesta área?
Considero que são passos importantes, que nunca foram dados, e tendo em conta que a indústria têxtil é agora um sector estratégico para a comunidade europeia, têm que existir formas de nos defendermos. O passaporte digital dos produtos, no fundo, é fazer com que os países fora da UE cumpram as regras que nós já cumprimos. O sector têxtil foi dado como moeda de troca há muitos anos, como bem sabemos. Tivemos de nos reinventar e a nossa resiliência já vem daí, mas chega um momento em que a Europa não pode ter sempre a porta aberta a todo o tipo de produtos de qualquer parte do mundo. Assim, as empresas fora da UE têm de cumprir as regras europeias, tal como nós, quando exportamos para esses países, temos de cumprir as regras locais.
De que forma pode constituir uma vantagem competitiva para a indústria têxtil portuguesa?
Portugal tem hoje em dia uma vantagem enorme: apesar de tudo e contra todos, ainda tem uma cadeia têxtil que funciona bem, desde o fio até ao produto confecionado, ou seja, controla todas as etapas do processo produtivo, o que na Europa é caso único. Se conseguirmos manter este cluster têxtil de uma forma muito coesa, dinâmica, versátil, flexível, como existe ainda hoje, temos aqui uma grande mais-valia, com uma amplitude de 360º, no caminho da sustentabilidade, da bioeconomia, da pegada ecológica, da investigação, com o apoio das universidades e centros tecnológicos.
Que ações tem a Somelos vindo a desenvolver em matéria de sustentabilidade?
Há muito que temos vindo a desenvolver ações, mas hoje com mais foco, pois é o tema da atualidade. Na componente social, a Somelos tem um infantário há 45 anos, hoje com cerca de 170 crianças desde os 3 meses. Funciona lindamente, é um exemplo na região. Ao nível do CCD Somelos, um centro cultural e de solidariedade dentro do grupo, ajudamos colaboradores nossos com bolsas de estudo, pessoas com incapacidade, além de promovermos anualmente quem faz parte deste grupo. Na parte ambiental, temos um parque industrial com mais de mil árvores plantadas e todos os anos incrementamos e promovemos uma melhor utilização do parque industrial, temos fontes de energia limpa e estamos a crescer ainda mais nesta vertente – comprámos uma caldeira de biomassa que nos permite utilizar resíduos das florestas locais, o que possibilita uma gestão mais eficiente, participamos em projetos de poupança de água e melhor utilização dos recursos hídricos na tinturaria e acabamentos de fios e tecidos, promovemos com os nossos fornecedores de químicos e auxiliares o desenvolvimento de processos de acabamento mais amigos do ambiente. Temos a possibilidade de atuar desde o início até ao fim do processo. Começamos nas matérias-primas, seja nos algodões orgânicos, nas fibras celulósicas artificiais, nas próprias lãs e caxemiras que usamos, com maior rastreabilidade, bem como fibras novas como o ananás, a tangerina, a urtiga… É um processo de investigação superinteressante e um caminho que não tem retorno para chegar a produtos novos, para mercados que querem e pagam a sustentabilidade.
E no âmbito da reciclagem, há algum projeto em curso?
Aproveitámos, desde sempre, alguns dos nossos desperdícios de algodão, que são reutilizados em fios de menor qualidade. Há 64 anos que fazemos essa reciclagem, embora hoje seja de forma mais sofisticada. Atualmente não é só nos algodões, é também noutro tipo de matérias-primas, nos próprios tecidos que saem da tecelagem, fazemos a separação, produzimos fios – não o fazemos internamente, mas temos parceiros que nos ajudam nisso – e voltamos a tecer. Essa reciclagem é bem aceite, mas tem como destino uma gama de produtos específicos. Pretendemos, com essa economia circular, conseguir ter um produto reciclado com um nível qualitativo semelhante ao que não é reciclado. Esse é o grande desafio.
Quanto representa na produção?
Neste momento, representa entre 10% e 15%, uma percentagem que será para aumentar já num futuro próximo.
Uma questão muito debatida na atualidade é a das emissões de carbono. Que política tem o grupo adotado neste domínio?
Dentro do grupo existem empresas em que essa questão é mais sensível do que noutras. Ao nível da tinturaria e acabamentos é onde tem mais impacto. As auditorias que fazemos anualmente dão informação mais precisa nesta vertente e com ações fazemos com que anualmente diminuamos as emissões de carbono. As nossas medições têm valores cada vez mais baixos e isso faz com que a fábrica, todo o espaço industrial, seja cada vez mais sustentável. Todos devemos contribuir, cada um na sua proporção, para que isso aconteça. Mas tudo isto tem um custo, muitas vezes são investimentos altos, devemos fazer com uma cadência pré-definida, com uma calendarização clara, evitando andar à frente do que não são necessidades prementes, porque, senão, a fatura é demasiado dispendiosa e deixamos de ser competitivos. Sou contra medidas que muitas vezes não são ainda necessárias nesse momento e são impostas às empresas apenas por uma questão de “moda” ou porque pretendem dizer que o país já tem, mas com um custo muito elevado. Temos que ser coerentes e pragmáticos nestas questões.
Esses relatórios são agora divulgados externamente?
Antigamente eram para consumo interno. Atualmente, são informações mais expostas e transmitidas aos clientes, mas não só nas questões de emissões de carbono. Nem imagina a exigência que as próprias marcas nos colocam: querem saber de onde vem o algodão, quem o produziu, a que preço foi comprado, de onde vieram as nossas lãs, como são tratadas as ovelhas,… Tudo isso tem de ser registado, tratado, informado. Dentro das empresas é preciso ter uma organização para dar estas respostas, porque muitas destas informações existem, basta compilá-las e é uma forma de começarmos a preparar o passaporte digital dos produtos. Tudo tem uma história, uma narrativa que acompanha o produto do início ao fim do processo. Mas há uma coisa muito importante. Quem está a pedir isto, até ao momento, são as marcas, não é o consumidor final. É um assunto B2B não B2C. Ainda não existe uma sensibilidade geral do consumidor final para estas questões, ainda são poucos. A grande pressão da sustentabilidade é sobretudo das marcas.
Que peso tem a denominada gama de produtos ambientalmente sustentáveis nas vendas do grupo?
Nas vendas do Grupo Somelos ronda os 60%.
Que mercados revelam maior apetência por esse tipo de produtos?
Os países do norte da Europa, algumas zonas dos EUA e mercados asiáticos. Depois, existem outros que querem, mas, muitas vezes, não querem pagar o preço correto pelos produtos, porque nestes casos os processos também são mais caros. Mas é um caminho que se deve fazer, que está a ser muito bem feito pelo sector têxtil português e que vai ter cada vez mais importância no futuro.
Que vantagens advêm do facto de dispor de um grupo vertical, da fiação à confeção?
Hoje, a verticalidade das empresas é um fator muito importante, mas não acredito numa gestão vertical. Acredito numa gestão horizontal e é isso que o grupo Somelos faz. Há 32 anos, a Somelos tinha um organigrama e uma gestão vertical e sentimos que era um modelo esgotado, que não tinha futuro. Por isso realizámos uma profunda mudança nessa altura, digo mesmo ímpar, que nos permitiu manter, ao dia de hoje, todas as áreas de negócio que tínhamos no passado. Atualmente, quem olha de fora, vê um grupo vertical, mas não o somos. Aliás, na Europa, já quase não existem grupos verticais na têxtil. O facto de manter estas áreas de negócio permitiu evoluir no conhecimento, focar na especialização ao nível industrial e comercial e hoje transmite uma confiança muito grande aos clientes, já que dependemos somente de nós próprios, desde a produção do fio até à confeção.
Quantas pessoas compõem o efetivo?
Neste momento, temos 730 pessoas, entre as áreas de serviços e as áreas industriais.
Como encara um grupo desta dimensão o curto, o médio e o longo prazo no que diz respeito aos recursos humanos?
Em primeiro lugar, temos de continuar a cativar as pessoas a trabalhar no sector têxtil. Acho que está na moda e vai continuar, há gente nova a querer vir para o sector têxtil. Claro que não vou dizer que todos os subsectores do têxtil têm a mesma atratividade. Há sempre uns mais do que outros – e dentro destes existem departamentos mais atrativos que outros, por exemplo, em termos de designers ou afinadores, claro que estou a colocar extremos. Trabalhar com as máquinas de última geração, com alta tecnologia, com a valorização das pessoas, proporcionar uma formação profissional adequada, o contacto com o mundo exterior, com o mundo da moda, a forma como os colaboradores são tratados dentro das próprias empresas, tudo isto faz a diferença. Mas, no espaço comunitário, vai sempre existir dificuldades – como em tudo, os recursos humanos são um bem escasso e vão continuar a ser. Um dos nossos desafios é preparar as próximas gerações, e cada vez com mais antecedência, para que as empresas consigam continuar no tempo. As políticas de recursos humanos têm que ser mais eficientes, mais dinâmicas e mais humanas, de forma a que as pessoas não sejam mais um número, mas sim um nome e saibam a importância que têm dentro da organização.
Estamos quase a entrar no último mês do ano. Que balanço faz de 2022?
Este ano, a Somelos vendeu mais em valor e em quantidade. Portanto, há aqui um duplo efeito: um efeito via aumento de preço, principalmente devido ao aumento dos custos operacionais associados; e um aumento ao nível de quantidade, visto que recebemos mais encomendas. Este ano é um ano comercial e de rentabilidade que considero muito importante, vai posicionar o grupo num outro patamar. Fico muito contente porque, em primeiro lugar, estamos a ser premiados pelos nossos clientes e, em segundo, é resultado de trabalho interno árduo de todas as equipas, focado numa estratégia ímpar no sector têxtil nacional, a qual tem posicionado o grupo como um dos mais importantes a nível mundial no seu segmento de atividade. Somos a referência.